REFLEXOS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL APLICADA AO PROCESSO PENAL
Marcio Cavalcante da Silva
Inteligência Artificial (IA) é um ramo da ciência da computação que se propõe a elaborar dispositivos que simulem a capacidade humana de raciocinar, perceber, tomar decisões e resolver problemas, enfim, a capacidade de ser inteligente[1].
Historicamente, teve início a partir de 1940 a pesquisa em torno desta referida ciência, que na época, era desenvolvida apenas para procurar ou encontrar novas funcionalidades para o computador, ainda em projeto. Com o advento da Segunda Guerra Mundial, surgiu também a necessidade de desenvolver a tecnologia para impulsionar a indústria bélica.
A partir de um período (1960), surgiram várias linhas de estudo da Inteligência Artificial, uma delas é a biológica, que estudou o desenvolvimento de conceitos que pretendiam imitar as redes neurais humanas.
Hoje em dia, são várias as aplicações na vida real da Inteligência Artificial: jogos, programas de computador, aplicativos de segurança para sistemas informacionais, robótica, dispositivos para reconhecimentos de escrita a mão e reconhecimento de voz, programas de diagnósticos médicos, até que chegou aos tribunais de vários países, já sendo uma realidade no Brasil, no âmbito do Poder Judiciário, Ministério Público e Segurança Pública.
A inteligência artificial funciona através de algoritmos, que é uma sequência de operações aplicadas a um número determinado de dados, para a realização de tarefas por uma máquina. Esses dados são inseridos num software, de forma que o programador do sistema crie através deles diversos códigos e rotinas, para que a máquina realize atividades que poderiam substituir a atuação humana.
O auxílio desse sistema, por exemplo, permite que os funcionários de um Tribunal dediquem mais tempo a outras atividades que envolvem maior expertise jurídica. Desse modo, o trabalho dos analistas judiciários se torna mais eficiente quando tarefas de maior viés burocrático são deixadas a cargo de sistemas auxiliares.
O Supremo Tribunal Federal, nossa mais alta Côrte de Justiça do país já faz utilização da inteligência artificial, projeto apresentado no ano de 2018, batizado pelo nome “Victor”, para pré-processamento de recursos extraordinários e também que, além disso, selecionaria temas de repercussão geral para julgamento[2]
Ressalta-se, que a princípio a inteligência artificial não será utilizada pelo STF para julgamento de feitos, porém, indubitavelmente, trata-se de um primeiro “passo”na direção de uma abrangência com o fito de desafogar a carga de trabalho dos julgadores , não apenas na suprema côrte, como também nos tribunais em todo país.
Essa não é uma realidade distante, uma vez que já existe a utilização de I.A em alguns países, como por exemplo os EUA, para decisões judiciais, gerando uma série de controvérsias, no que tange ao seu mecanismo em detrimento aos direitos de um cidadão.
Diante disso, necessário se faz uma análise de eventuais reflexos negativos que podem ser importados ao processo penal brasileiro, mesmo diante do avanço da I.A para o desempenho da atividade judicial, devendo se fazer pontuais ponderações no aspecto da Justiça criminal, pelas suas consequências sobre os direitos fundamentais.
Para se ter noção da problemática no uso indiscriminado de I.A, em New Orleans, nos Estados Unidos, O site “The Verge” descobriu que, em 2012, o ex-prefeito da cidade, Mitch Landrieu, assinou um contrato sigiloso com a startup Palantir para usar inteligência artificial no combate ao crime[3].
A Palantir Technologies é uma empresa de mineração de dados que tem parceria com o Pentágono e serviços de inteligência nos EUA.
A empresa ofereceu ao governo de New Orleans acesso gratuito a um sistema que usa inteligência artificial para identificar padrões de criminalidade e prever novos crimes. Como não houve cobrança pelo serviço, o prefeito firmou o acordo sem prestar contas para a Câmara ou para a população.
A prefeitura de New Orleans alimentou o software da Palantir com todo o arquivo do departamento de polícia da cidade. Esses dados foram cruzados com informações públicas das redes sociais e mapas da cidade.
A empresa identificou que era possível descobrir a conexão de certos indivíduos com gangues locais e as chances de certas pessoas cometerem crimes ou tornarem-se vítimas. A tecnologia também é capaz de identificar os possíveis autores de um crime a partir de informações parciais obtidas pela polícia, como metade do número da placa de um carro em fuga[4].
O que se tem, é uma aplicação lombrosiana, através de utilização de dados de redes sociais, para determinação de perfil de possíveis criminosos, sem consistências probatórias concretas que apontam para a criminalidade, inaugurando uma nova forma específica de conceituar potenciais pseudo-infratores.
Não obstante ao mecanismo tecnológico aplicado em New Orleans, a Suprema Corte americana já utiliza inteligência artificial para prever o voto de seus julgadores em alguns processos, pautando-se em pesquisa das decisões anteriores sobre determinadas matérias, e isso é perigoso demais, sobretudo porque existe uma margem de erro da máquina, o que nos leva a crer que, possivelmente, decisões estão sendo tomadas com base no algoritmo matemático, para poupar o trabalho dos julgadores, como já é uma realidade no estado americano de Wisconsin[5], onde os magistrados criminais calculam a pena de prisão e decidem sobre a concessão de liberdade provisória pelo sistema de pontos de um algoritmo matemático, cuja avaliação é realizada através de questionário respondido pelo preso.
No Brasil, hoje podemos vivenciar essa realidade temerária, e digo temerária porque esse avanço tecnológico, em outros países, tem uma certa desproporcionalidade com o ordenamento jurídico constitucional, esculpido na Carta Democrática de 1988, causando a inobservância de princípios constitucionais, caso se firme de igual modo, como o da presunção de não culpabilidade, a individualização da pena e da humanidade na execução penal, pela “nivelação” de pseudos perfis criminosos.
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, investiu R$2,9 milhões em tecnologia e já vem utilizando avanços como Big data, Inteligência Artificial e Mineração de dados para dar maior agilidade nas investigações[6], cruzando dados de informações com rapidez, e em alguns casos, fazendo o que humanamente seria impossível, em casos complexos e que envolvem enormes quantidades de informações, como por exemplo, localização de GPS, Placa de veículos, registros civis, relações de parentesco, dados dos veículos, multas, câmeras de trânsito, processos, empresas e seus sócios, tudo isso sendo pesquisado e com informações cruzadas, em segundos, através de softwares.
A Polícia Civil também trabalha com esse tipo de tecnologia, que vem sendo utilizada para investigações complexas, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro, como por exemplo no caso Marielle, onde a Delegacia de Homicídios, utilizou inteligência artificial para analisar diversos dados colhidos[7].
Apesar de ainda ser o início dessas inovações no Brasil, estamos devidamente inseridos em uma nova era do processo penal brasileiro, que anda a passos largos em direção à alta tecnologia e aplicações digitais, seja no judiciário, executivo ou no Ministério Público.
Não se pretende macular toda a relevância e avanço dessa tecnologia. Há de se reconhecer a sua importância na celeridade das investigações ou em atos administrativos nos tribunais, porém isso deve ser mitigado quando nos deparamos com o risco iminente de ultrapassar limites que venham colidir com direitos e princípios constitucionais e fundamentais.
Alinhado a isso, importante destacar ponderações acerca dos direitos do investigado/réu e a observância da Lei Geral de Proteção de Dados, Lei. nº 13.709/18, que dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural[8].
Importante destacar o art.4ª da Lei 13.709/18, que dispõe o seguinte:
Art. 4º Esta Lei não se aplica ao tratamento de dados pessoais:
I – realizado por pessoa natural para fins exclusivamente particulares e não econômicos;
II – realizado para fins exclusivamente:
- a) jornalístico e artísticos; ou
- b) acadêmicos, aplicando-se a esta hipótese os arts. 7º e 11 desta Lei;
III – realizado para fins exclusivos de:
- a) segurança pública;
- b) defesa nacional;
- c) segurança do Estado; ou
- d) atividades de investigação e repressão de infrações penais; ou
IV – provenientes de fora do território nacional e que não sejam objeto de comunicação, uso compartilhado de dados com agentes de tratamento brasileiros ou objeto de transferência internacional de dados com outro país que não o de proveniência, desde que o país de proveniência proporcione grau de proteção de dados pessoais adequado ao previsto nesta Lei.
- 1º O tratamento de dados pessoais previsto no inciso III será regido por legislação específica, que deverá prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, observados o devido processo legal, os princípios gerais de proteção e os direitos do titular previstos nesta Lei.
No que tange aos casos em que são utilizados os dados para fins de segurança pública, investigações ou interesse do Estado, o art.4ª, inciso III da Lei.13.709/18 diz que essa lei não se aplica, justamente porque deve se observar os direitos do titular, o devido processo legal e os princípios gerais de proteção, como dispõe o §1º.
Em outras palavras, não se deve ter acesso à dados da privacidade ou intimidade de um cidadão, sem que haja respeito aos direitos fundamentais e ao Estado Democrático de Direito, razão pela qual, ainda que haja interesse de segurança pública, o direito constitucional para ser relativizado necessita de regulamentação por lei específica e o respeito ao devido processo legal.
A respeito disso, chegamos à conclusão que não se pode aferir, desta forma, a periculosidade de um investigado ou de um réu, por exemplo, sem a análise individualizada das circunstâncias da sua prisão para se verificar, então, a possibilidade de concessão de liberdade provisória, conforme os requisitos do artigo 312 do CPP:
Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.
Outra observância a ser feita, seria o cálculo da pena para o réu pelo sistema de algoritmo matemático (I.A), desprezando-se o teor do caput, artigo 59 do Código Penal, que considera vários aspectos, como a personalidade do agente e a conduta social, justamente para garantir a individualização da pena[9]:
Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime.
Diante dessa superficial discussão já é possível identificar o quanto é necessária a análise subjetiva humana de questões decisivas no decorrer de uma investigação ou processo criminal, uma vez que não se pode substituir o homem por uma máquina, em questões de análise de raciocínio e percepção, muita das vezes por experiência profissional e de vida, que contribuem para uma decisão acertada e justa em um processo.
O respeito aos direitos fundamentais de um acusado, o olhar humano e subjetivo de cada caso, não podem correr riscos catastróficos destruindo a vida de um cidadão, para beneficiar o trabalho de um servidor público ou dar resposta jurisdicional mais rápida.
Processo justo não é um processo rápido, processo justo é aquele que apesar da demora, todas as circunstâncias foram analisadas com cuidado, com técnica, experiência e, principalmente, fundamentado no ordenamento jurídico brasileiro.
[1] https://www.tecmundo.com.br/intel/1039-o-que-e-inteligencia-artificial-.htm
[2] http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=380038
[3] http://link.estadao.com.br/blogs/ligia-aguilhar/policia-usa-inteligencia-artificial-para-prevenir-crimes-eua
[4] http://link.estadao.com.br/blogs/ligia-aguilhar/policia-usa-inteligencia-artificial-para-prevenir-crimes-eua
[5] http://www.bbc.com/portuguese/brasil-37677421
[6] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2018/10/01/mp-aposta-em-inteligencia-artificial-para-agilizar-investigacoes-no-rj.ghtml
[7] https://oglobo.globo.com/rio/policia-usa-inteligencia-artificial-para-analisar-dados-colhidos-na-casa-da-mulher-do-suspeito-de-matar-anderson-marielle-23992775
[8] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm
[9] https://www.conjur.com.br/2018-jun-10/claudia-bonard-inteligencia-artificial-direito-penal-brasileiro